Domingo, 6 de Julho de 2008

Como é que se enterra um filho vivo?

JN 06 Julho 2008

 

Três mulheres. Três crianças desaparecidas. A memória turva dos filhos é cada vez mais uma fotografia baça. A preto e branco. Mas as memórias não são papéis. Resistem ao arquivamento. As mães de Rui Pereira, de Rui Pedro e de Cláudia Alexandra estão mais sós com o aproximar do fim do caso Maddie.

Houve um tempo em que os olhos, toldados pela ausência do Rui, buliram um bocadinho. É difícil enterrar um filho vivo. Maria de Jesus leva com a pouca força que lhe resta as mãos aos céus. Sem teatralidade.

A pobreza nem isso lhe dá. Não se sabe se roga de contentamento, de tristeza ou de esperança. Roga, só. A "Carricinha", desaparecida há 14 anos, renasceu vai para 13 meses. Anda por ali, às vezes, no pátio enlameado, vigiada pelas videiras carregadas de morrinha, a meter as mãos na terra.

Parece um conto de fadas.

Mónica. Na verdade chama-se Mónica. Tem uns olhos azul-água, doces, doces. Era para se chamar como a tia: Cláudia Alexandra Silva e Sousa. "Carricinha", como a identifica o site da Polícia Judiciária. Como a mãe a chamava pela manhã. "São tão iguais. Foi Deus que ma deu outra vez". A avó Maria de Jesus não enterra a filha. Encontra-a todos os dias no carrapito louro da bebé Mónica. Que só não é Cláudia Alexandra Silva e Sousa de baptismo porque a dor era demasiada. Mas é "Carricinha", também.

A mãe sabe hoje que a "Carricinha", a de olhos quase azuis, dificilmente volta. Foi voltando aos bocados, na esperança das reaberturas aos solavancos do processo, por arrasto do grande, o da Maddie, agora tão às portas de conhecer igual destino: arquivamento.

"A ladainha é a mesma. E se não descobrem nada numa criança assim, rica, com pais famosos e tudo, vindos do estrangeiro, que hão-de fazer à minha, tão pobre?" Maria de Jesus, "doente da cabeça" desde que viu, há 14 anos, a sua menina de 7 dobrar a curva da rua do Baltar, em Oleiros, Vila Verde, ali pertinho de casa, viu e nunca mais a viu, carrega consigo essa dupla dor da pobreza. Sobrevive sentada ao tear, a 75 cêntimos cada tapete de metro e meio.

Aquele tugúrio enegrecido pela humidade, carregado de fotografias baças, era o quarto de Cláudia Alexandra Silva e Sousa, filha de Maria de Jesus, desaparecida numa sexta-feira 13 e de Maio. Deus, às vezes, esquece-se dos dias.

Filomena Teixeira vai-se apagando devagarinho. Não fala, não quer fotografias, foge agora das notícias de desesperança. Houve um tempo em que os olhos, toldados pela ausência do pequeno Rui Pedro, buliram um bocadinho mais. Criou-se um site, agora parado há quase um ano, o rosto do filho voltou aos jornais ao lado da menina inglesa, surgiram pistas, o Ministério Público chamou a si o processo e requereu diligências internacionais. E ele ia vivendo um bocadinho mais, no rosto crescido da filha de Fiolmena, nas faces dos amiguinhos a ficarem homens.

"É um misto de saudade, de tristeza e de angústia. Estou sempre a revê-lo na cara dos amigos todos". É ao telefone que repete palavras tantas vezes ditas. Menos o medo, que agora regressa em força, o medo de mais um esquecimento. "Lembraram-se de nós no último ano. E agora? É inconcebível se arquivarem o desaparecimento da Maddie". A dor dos outros é a dor dela. "Já o tentaram comigo duas vezes. Eu não vou deixar".

O tempo dobra a firmeza de Filomena. "O tempo passa e é difícil as pessoas manterem-se firmes". O tom de voz é monocórdico, triste, impotente. "Estou a passar um mau bocado". Uma década de maus bocados. "Vivo nessa angústia permanente. Mas não quero perder a esperança".

Rui Pedro era um menino de onze anos quando foi visto pela última vez, a andar de bicicleta num terreno atrás do escritório onde a mãe trabalhava, em Lousada, distrito do Porto.

Filomena já não vai lá.

O que é que se guarda de um filho?

Laurinda remói a memória. Os recortes dos jornais. Que somaram uma pequena pilha com o eclodir do caso Maddie - triste sina, a mágoa dos outros serve-se em cadeia, alimenta a esperança, cria laços na simpatia do luto, "tudo tão ao contrário, tão estranho". Guardam-se uns brinquedos na arrecadação, também ao monte, roupa ("Se calhar porque ninguém quis, não sei. Ou não foi posta a uso, não sei.") e duas ou três fotos. "Parece que são poucas, que não guardámos que chegue. Mas também, quem ia imaginar?". E guardam-se uns farrapos de recordações.

Quando ela chegava a casa, por volta das cinco e pico da tarde, o Rui Pereira, "Pereirinha", dizia-lhe a mãe, haveria de vir a correr. Pão com tulicreme ao lanche, talvez, ou com marmelada, o que o dinheiro do mês permitisse - um rapazinho na casa dos 13 anos é de muito sustento, "feliz sustento". "Ficava descansada". E lá ia ele a correr para a bola outra vez, por entre as árvores raquíticas do espaço comum cercado de vizinhos do Edifício das Lameiras.

Um dia, não veio para o lanche. Ter-se-á chegado a um carro, parado estrategicamente junto ao jardim da Biblioteca de Vila Nova de Famalicão, ali a dois passos das Lameiras. Nunca mais foi visto. Foi em 1999.

Essas são recordações que Laurinda não viu. Contaram-lhe. As outras, as que viu, fogem-lhe mais. Como o rosto dele, seguro num "passe partout" rodeado de "Nossas Senhoras", ou o retrato-robô de como ele poderá parecer hoje, dado por uns jornalistas ingleses que lá foram a casa faz agora um ano. Não que os preocupasse o desaparecimento do "seu" Rui em particular. "Era só para saber se a polícia tinha feito bem as coisas".

Outra vez o caso Maddie. "A mim, na polícia, arquivaram-me o processo sem dizer nada. Só depois é que reabriram". A mãe diz isso e há ali algum rancor. Quem a condena? "Se tivessem feito ao meu filho o que fizeram à menina ele tinha aparecido, ai isso tinha". Foi nessa altura, em Maio do ano passado, que surgiram novas pistas, mas que, até hoje, também deram em nada.

Laurinda Meira já não tem a que se agarrar. O fim de um processo há-de ditar o fim do processo do filho dela. "Se a tivessem encontrado era melhor para nós. Porque depois dela iam atrás dos nossos". Foi assim até agora. "Mesmo que se mantenha a esperança, é mais um pedaço de nós que se afunda".

A mãe agarra-se à imagem do que será o filho hoje. Andará, se for vivo, na casa dos 24 anos. Um homem feito. Como Rui Pedro e Cláudia Alexandra. "Tem que se lembrar de mim. Tem que se lembrar".

Mas Laurinda sabe o quanto as memórias traem. Ela, que perdeu o pai aos seis anos e o filho aos 33, não tem mais do que fiapos na lembrança. Perdida, ela, Filomena Teixeira e Maria de Jesus, num longínquo ano de uma infância de onde não conseguiram tirar os filhos.

 
publicado por arco íris às 10:38

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